
Lacerda comemora três prêmios no Festival de Gramado com o ator pernambucano Rodrigo Lacerda. Crédito: Edison Vara/Divulgação
“Existe muita passividade no país quanto à questão do corpo, do sexo e essa bandeira da tolerância me irrita. Como homossexual, eu não quero nem preciso ser tolerado. O que eu não quero é violência, agressão”, disse Lacerda ao GLOBO, comemorando ainda a conquista do prêmio da crítica e dos troféus de melhor trilha sonora e melhor ator, para Irandhir Santos.
Desde a década de 1990, ele é respeitado no mercado audiovisual pela fama de ser um dos maiores roteiristas do país. Assinou os roteiros de todos os filmes de Cláudio Assis (Amarelo manga) e escreveu um para o ator Matheus Nachtergaele (A festa da menina morta) e dois para Lírio Ferreira (Árido movie), com quem dirigiu o documentário Cartola – Música para os olhos (2006). Mas Gramado viu nascer outro lado dele: sua porção cineasta ficcionista.
Estreante em longas-metragens de ficção, Lacerda incendiou Gramado em todas as latitudes, dos críticos ao público, ao infringir todos os tabus ainda existentes em torno da abordagem cinematográfica brasileira para o amor gay. “Lírio Ferreira fala que faz cinema para resolver suas angústias. Eu faço cinema para inserir mais discussão no mundo”, diz o diretor de 48 anos.

Longa-metragem
se passa na Olinda dos anos 1970 e mostra uma história de amor nos
bastidores de uma companhia teatral. Filme estreia nacionalmente em
novembro
Mas essa love story é apenas uma deixa para que o realizador de 48 anos saia em busca de um tempo perdido. O tempo do desbunde, quando, no auge dos anos de chumbo, artistas e intelectuais fizeram do livre arbítrio de seus próprios corpos uma bandeira de resistência à ditadura.
“Tatuagem é um passeio pela memória do corpo. É uma forma de apontar para o futuro olhando para o passado. Quando meu filme começou a ser feito o cenário brasileiro ainda não estava tão grotesco quanto agora”, diz Lacerda, referindo-se às passeatas que varrem ao Brasil desde junho.
Ele se refere em especial àquelas em protesto contra o pastor e deputado federal Marcos Feliciano (PSC), em suas reflexões sobre “cura gay”. “Não gostaria que Tatuagem se reduzisse ao rótulo de filme homossexual. Mas se existe uma chance de ele colocar a discussão das diferenças sexuais na pauta do país, eu quero que essa oportunidade se concretize”.
Previsto para estrear em novembro, seu Tatuagem se impôs na telona do Palácio dos Festivais de Gramado não apenas por suas cenas tórridas de sexo, mas também pela coloquialidade de seus diálogos — marca registrada de Lacerda. A sequência em que Clécio tem uma conversa de amigo com a diva do Chão de Estrelas, o homossexual Paulette (Rodrigo Garcia), levou o festival a um misto de riso e lágrimas em um bate-papo capaz de sintetizar a essência da amizade, com suas dores e alegrias.

Diálogo
entre Irandhir Santos (vencedor do prêmio de melhor ator) e Rodrigo
Garcia é um dos pontos altos no longa e emocionou a plateia
Em São Paulo, onde vive, ele escreveu um único longa com espírito de grande metrópole: Estamos juntos (2011), de Toni Venturi. Seus roteiros, em geral, voltam-se para a cena atual do Recife, urbana ou rural. Mas agora ele prepara a versão para as telas do romance Juliano Pavollini, de Cristóvão Tezza, que marcará a estreia do ator Caio Blat na direção de longas. Ele também é um dos roteiristas de Órfãos do Eldorado, que Guilherme Coelho filma este mês com base em romance de Milton Hatoum. Prepara ainda uma série para a TV, Contos que vejo, baseado na literatura nordestina.
“Escrever roteiro é uma forma de montagem. Você vai organizando um mundo colocando em prática a sua inquietação. E, me geral, eu vou aos sets, ver como as palavras que escrevo vão ganhando vida”, diz Lacerda. “Mas quando você dirige algo de sua própria autoria, você começa a dar atenção a detalhes que antes, apenas escrevendo não via. Eu fui reparando, por exemplo, quando cheguei ao set, que escrevi muito de Tatuagem pensando na habilidade de Irandhir de se modelar, fazendo do corpo uma contradição. No fundo, a liberdade corporal era a arma dos desbundados. E eu fico me perguntando por que hoje essa liberdade ainda choca”.
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